terça-feira, 12 de setembro de 2017

Capítulo 4 - Posto Vigília
De manhãzinha, saímos novamente, só que desta vez a pé. 

Andar pelo Umbral é estranho. Se a Colônia é uma festa aos meus olhos, o Umbral, com seu ambiente angustioso e depressivo, é para mim uma visão terrível e horripilante. Sabia que muitos espíritos vagavam por lá, e apiedei-me deles, como também sabia que muitos ali estavam por gostar, o que achei tremenda falta de gosto, mas temos todos o livre-arbítrio e cada um gosta de um lugar. Caminhamos horas em fila, todos juntos: 

D. Isaura na frente, Raimundo no meio e Frederico no Final; Flor Azul ao meu lado.

Não conversamos, íamos em silêncio. Tivemos
recomendações de não conversar, para não sermos notados. Caminhávamos cautelosos pisando em terreno mais firme, porque há muita lama. Vestimos capas de cor marrom, que vinham até os joelhos, com capuz, deixando somente o rosto de fora, e calçamos botas especiais. Luíza comentou, enquanto nos vestíamos:


- Por que nos vestimos assim para andar pelo Umbral? Parece tão estranho.


- Estamos somente nos protegendo - respondeu D. Isaura.


- Caso sejamos atacados, as capas nos protegerão. As botas são para dar segurança na caminhada.


Ao caminhar pelo Umbral, entendi o porquê de nos vestirmos assim.


O Umbral é sujo, tem partes escorregadias. As botas nos davam firmeza, e as capas, conforto.


Deslumbrada com o que via, ao dar por mim, muitas vezes estava com os olhos arregalados. 


Pensei:

”Se estivesse aqui sozinha, morreria de medo, se porventura isto fosse possível”. Em certo momento, uma grande ave voou perto de nós. Assustei-me e abafei um grito que ficou preso na garganta. Mas não fui só eu a levar o susto, Luíza e Nair aconchegaram-se a Flor Azul, que estava tranqüilo e nos olhava sorrindo. O resto do caminho fiquei bem perto dele. Fizemos o trajeto em perfeito silêncio e sem problemas.


A claridade é escassa, parecia o anoitecer entre os encarnados. Sem muita neblina ou nevoeiro. De
longe, o Posto parece somente um muro, não se vê nada dele por fora. Ao aproximarmo-nos mais, vimos o muro cinzento e o portão, parecido com um de madeira, pesado, trabalhado em relevo, bonito e simples.


D. Isaura fez soar a campainha e o pesado portão foi aberto. Entramos no pátio: era quadrado com
poucas flores, em alguns canteiros, a enfeitá-lo, rodeado de pequenas árvores sem muita beleza, parecidas com muitas que possuem os encarnados. 


Fomos recebidos pelo seu administrador, diretor ou responsável:

- Boa tarde! Sou Guilherme. Sejam bem-vindos ao Posto Vigília. Por favor, venham comigo,
mostrarei seus alojamentos, pois presumo que queiram descansar.


As Colônias e Postos de Socorro seguem o mesmo horário da Terra. Se na cidade dos encarnados
fossem quatorze horas, ali também era.


O Posto Vigília fica no Umbral, numa zona de muito sofrimento. É uma casa transitória ou rotatória, ou seja, muda de lugar. Joaquim, um dos nossos colegas, trabalhou ali por anos, e estava afastado para fazer o curso. Depois de concluí-lo, retornará a suas atividades. Foi recebido com alegria, abraçado pelos trabalhadores do Posto.


Percebemos que todos ali se amavam, formando uma grande família.


Luzes artificiais iluminam o Posto dia e noite. Do pátio, passamos à parte destinada aos hóspedes.


Ficamos, Luíza e eu, juntas no quarto, que era simples, sem enfeites, mas confortável. Após nos
higienizarmos, fomos ao refeitório, onde tomamos a refeição, composta de frutas e caldos. Reunimo-nos logo após no salão de palestras para conversarmos.


Recebemos explicações sobre o Posto Vigília.


- Este abrigo foi criado na mesma época em que se formou um povoado para os encarnados. Quando
o ambiente começa a ficar deveras pesado, vem a tempestade de fogo e mudamos de lugar - explicou
Guilherme.


- Queria ver uma! - Exclamou James.


- Não estamos esperando para já - continuou o administrador do Posto. - O fogo cai como raios
queimando tudo, purificando os fluidos pesados.


Todos fogem, e os que estão para ser socorridos recebem aqui o abrigo.

- Muda-se para longe? - Indaguei. - Não, sempre ficamos na região. Há casas como estas em outras Colônias, que chegam a mudar-se para locais vinte a cinqüenta quilômetros distantes. Nós normalmente nos mudamos para sete a dez quilômetros.


Faz tempo que trabalha aqui? - Perguntou Nair. Há trinta anos.


Puxa! - Exclamou Marcela. - Deve ter adquirido muita experiência. Como veio para o Posto?


Quando encarnado, fui pessoa boa, cumpridora dos meus deveres. Amava e amo os Evangelhos e
tudo fiz para seguir os exemplos de Jesus. 


Desencarnei e, ao ser socorrido, fui levado para uma Colônia.

Achei encantador tudo o que vi lá, mas amei este Posto logo que o visitei em uma excursão, como a que vocês estão fazendo agora.


Entendi que são poucos os que, como eu, são socorridos ao desencarnar e me apiedei ao ver tantos irmãos imprudentes que sofrem; quis trabalhar no Vigília. Meu pedido foi aceito e por anos servi aqui, fiz um pouco de tudo. Pude socorrer amigos, parentes e, aos poucos, todos os socorridos passaram a ser meus irmãos. Aqui aprendi a amar a todos, como Jesus nos ensinou.


Tenho um amor especial por este recanto de auxílio. Há treze anos administro o Vigília.

Guilherme, ao falar do Vigília, tinha os olhos brilhando, entusiasmados. Olhei para ele com
admiração, certamente não era, o seu trabalho, fácil. Ali estava somente por amor aos semelhantes e deixava transparecer isso em seus modos, no seu olhar tranqüilo e bondoso. A admiração foi de todos.


A conversa continuou, trocamos idéias sobre o Umbral, da parte que vimos. Conversamos até as vinte horas e nos retiramos para nossos aposentos.


Na Colônia, quase não me alimentava ou dormia. 

Nessas excursões, andar pelo Umbral e ajudar nos Postos nos cansava, despendíamos energia. Assim, precisávamos de alimentação pelo menos uma vez ao dia, e de descanso. Esse descansar era ler algo edificante, meditar e até mesmo dormir algumas horas.

No outro dia, às cinco horas da manhã, participamos da prece matinal. Guilherme convidou D. Isaura para fazer a oração. Nossa orientadora orou com um fervor que nos comoveu. Pétalas claras de fluidos caíram sobre O Posto e sobre nós, fortalecendo-nos, saturando-nos de muita energia.


Logo após, fomos conhecer o Posto Vigília. É um Posto de tamanho médio. Tem salão para palestras, também ocupado para música, sala da diretoria, refeitório, pátio, salas de consultas, alojamentos dos trabalhadores e enfermarias.

Nossos três instrutores ficaram, desde nossa chegada, nas salas de consultas atendendo os abrigados confusos em busca de orientação. Flor Azul ficou o tempo todo ajudando nas enfermarias.


Repartimo-nos em grupos de sete e fomos com os trabalhadores ajudar nas enfermarias. Elas são
compridas, com leitos nos dois lados, têm banheiros simples, tudo muito limpo e claro. Os abrigados têm necessidades: ali comem e usam o banheiro. 


Têm fome e sede, só não sentem frio ou calor porque o Posto tem um sistema parecido com o ar condicionado dos encarnados. Esse sistema é central, deixando o Posto e até seus pátios com temperatura agradável.

Primeiramente, entramos nas enfermarias em que os doentes estavam em condições melhores.


Conversamos com eles e os ajudamos a se alimentarem e a se limparem.


- Você é bonita! - Disse, dirigindo-se a mim, uma senhora muito magra de olhos entristecidos.


- Obrigada. Como está a senhora?


-Agora não Posso me queixar. Já sofri muito. Mas foi merecido. Quando encarnada aprontei muito.


Sorri apenas. Sabia que a curiosidade não leva a nada. Tínhamos recomendações para animar os
enfermos, falar do Evangelho e de Jesus. Mas também de escutar seus desabafos.


- Você é tão boa! Sofreu ao desencarnar? 


- Indagou-me.

- Não, senti que ia dormir e acordei bem e entre amigos.


- Entre amigos. Para ter amigos é necessário fazê-los, não é? Não os fiz, e os que pensei ter eram
piores do que eu. Aposto que não sofreu, porque foi boa!


- Talvez devesse ter sido melhor. Mas não cometi erros, desencarnei em paz e a harmonia me
acompanhou.


- Você não quer me escutar um pouquinho? As vezes tenho vontade de conversar. Os trabalhadores
daqui são ótimos, mas tão ocupados, Sabe, não fui boa em nada. Fui má filha, fugi de casa aos treze anos para o meretrício, fiz muitos abortos. Tive três filhos, dei dois, o outro, antes o tivesse dado. Era um rapazinho esperto, um ladrão. Um dia, ao roubar de um cliente meu, este o matou. Não fui boa mãe. 


Bebia muito, envelheci rápido e a morte me buscou para o sofrimento. Fiquei dezessete anos no Umbral. Quando me socorreram, era um farrapo, estava muito cansada. Há bastante tempo estou aqui.

- E irá melhorar logo - disse animando-a. - Tire dos erros do passado acertos para o futuro. Tente se
recuperar e passar de ajudada a ajudante.


A senhora sorriu tristemente. Dei-lhe um passe, fiz alto uma oração, ela me agradeceu:


- Obrigada!


Um senhor dizia sem parar:


- O café, tenho que colher o café!


Após o passe disse frases maiores, e deu para entender que roubou muito café de seus patrões.


Colhia o café da plantação durante o dia e, à noite, ia pegá-lo. O arrependimento fazia-o ver o fato sem interrupção.

Depois do círculo de orações, ele adormeceu tranqüilo.


E, assim, muitos tinham histórias reais para contar, descortinavam erros sobre erros. A maioria fora
egoísta.


Amaram mais a matéria do que as verdades espirituais. O orgulho e o egoísmo levam muitos à porta larga da perdição, para o sofrimento após a desencarnação. Ao sairmos das enfermarias, Zé comentou:


- Estava com vontade de perguntar a Frederico por que existem tantas enfermarias e, nelas, tantos
necessitados.


Descobri ao escutar esses infelizes. Sabem, Impressionei-me ao ouvir de um senhor que estuprou e matou a Própria filha de oito anos.


Um dos trabalhadores do Posto, ao escutar, argumentou:


- São os imprudentes a que Jesus se referiu. Não fizeram o bem, viveram para a matéria, plantaram o
mal e colheram o sofrimento. E tanto fizeram maldades aos outros e a si próprios, que só poderiam ficar como estão.


Assim, caro estudante, estes abrigos são bálsamos para eles.


Na segunda enfermaria os doentes estavam em Piores condições. Uns falavam sem parar. Ao serem
atendidos com a alimentação, passes e orações, melhoravam, ora aquietando-se, ora falando frases mais coerentes.


Um senhor chamou-me a atenção, o remorso o castigava: ele expulsou os pais, já velhos, de sua casa, e eles desencarnaram em um asilo, sem vê-lo mais. Uma outra senhora falava sem parar que matara. 


Após tomar o passe, lembrou-se do amante que assassinara friamente. Outro senhor lembrava com aflição da filha renegada de sua amante.

“Que bom! - pensei - não ter erros para me atormentar. Como sou feliz! Nada melhor que plantar o bem”.


Visitamos duas enfermarias no Primeiro dia. Os trabalhadores do Posto não fazem o que fizemos.


Não há tempo, porque os operários são poucos para muito trabalho. Acabamos à tarde, fomos para nosso quarto, depois para o refeitório, e dele passamos ao salão de música.


A noite saímos para o pátio. Os muros que cercam o vigília são fortes e altos, e no pátio há uma torre
onde está o sistema de defesa. Para subir lá, usa-se um elevador, Subimos em grupos pequenos. A torre tem trinta metros.


Também tem sistemas de defesa perfeitos e nunca um ataque os preocupou. Margarida, a senhora
encarregada àquela hora da guarda, mOstrou-nos alguns aparelhos que medem as vibrações fora do Posto num raio de três quilômetros. Por ele ficam sabendo quem se aproxima e quantos são. Não se enxerga o céu, nem as estrelas; às vezes, a lua, quando é cheia. 


Olhei do alto da torre, em volta do Posto, não enxerguei nada, só o posto lá embaixo e suas luzes; fora, a neblina e a escuridão.

Quando esperava a vez de subir na torre, olhava distraída um pequeno e bonito chafariz de pedra
verde, com delicados contornos de flores, rodeado de plantas. Flor Azul aproximou-se:


- Está a pensar, Flor Azul de Patrícia?


- Espero a minha vez de conhecer a torre. Foi bom vê-lo. Quero agradecer.


-A menina se lembra do senhor que a agradeceu no Caridade e Luz? Sinto como ele, só que mais
feliz, porque posso acompanhá-la e fazer algo por você. O que lhe faço, gostaria de estar fazendo também a seu pai. Muito devo a ele, ao grupo espírita e a você. Poder retribuir é uma graça. Sou seu amigo desde que você era encarnada. Não me agradeça, faço isso de coração e com felicidade.


- Que bom ser sua amiga, Flor Azul!


-Ao termos bons amigos, temos tesouros. Tendo-os por amigos, você e seu pai, sinto-me rico.


Sorriu de maneira terna. ”É” - pensei -,”ele tem razão. Fazer por ter como amigos bons espíritos é ter tesouros no plano espiritual. Também me sentia possuidora de largos bens”.


Frederico fez a oração da noite e fomos descansar. Fiquei a pensar nos enfermos, no que vi e no que
ouvi deles.


Como a maldade faz mal ao maldoso! Como é difícil a colheita da plantação ruim!


No outro dia, fomos a três enfermarias de irmãos que dormiam em pesadelos. É triste vê-los. Uns
ficam com os olhos abertos e parados. A maioria não fala, seus semblantes são de horror. Estavam todos higienizados e bem instalados e, nem por isso, eram agradáveis de ver. Eles ficam com as imagens dos próprios erros a lhes passar na mente, sem parar. Às vezes, gemem com aflição. Cuidamos deles com carinho, limpando-os, acomodando-os, dando-lhes passes e fazendo orações. 


Muitos, depois, ficaram mais tranqüilos, melhorando suas expressões. O tempo que ficam assim é variado, alguns chegam a ficar anos, outros, meses. Quando acordam, passam para outra enfermaria. Os enfermos vão mudando de enfermarias até ficarem bons. Quando recuperados escolhem o que fazer: ou passam a trabalhar no Posto, ou vão para as Colônias estudar, ou reencarnam.

À noite escutamos músicas. Uma trabalhadora do Vigília nos brindou com encantadoras canções.


Chama-se Cecília, canta muito bem, tem linda voz. 


A boa música ajuda a refazer as energias. É sempre
agradável ouvir canções em companhia de amigos 


- Os trabalhadores do Vigília amam receber estas
excursões e visitas, gostam de conversar, trocar informações. A noite transcorreu tranqüilamente.

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